"E eu não sabia que a minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé."
Carlos Drummond de Andrade
Quando eu era criança, as coisas eram muito diferentes do que são hoje. A gente não podia fazer nada. Criança não ficava na sala se metendo em conversa de adulto, não comia os melhores pedaços do frango, respeitavam os mais velhos e não podiam fazer malcriações porque ficavam de castigo ou levavam uma bela surra. Entretanto tínhamos o prazer de andar descalço na grama, correr pelas ruas sem medo de sermos atropelados, chupar fruta direto do pé, subir nas árvores, fugir do homem do saco e fazer coisas proibidas, mesmo sabendo que se corria o risco de levar uma sova. E se é verdade que “o menino é o pai do homem”, isso fez de nós adultos corajosos, porque mesmo com medo a gente não deixava de fazer o que tinha vontade. Éramos ardis! Usávamos das mais diferentes técnicas de fuga e de métodos para enganar os pais. Eles, acredito eu, deviam saber das nossas artimanhas, porém não nos tiravam o prazer de nos sentirmos os donos da história.
Perto da minha casa tinha uma ruazinha cheia de árvores onde eu adorava brincar de bola com meus irmãos. Era bom porque sempre tinha sombra, mas os raios de sol passavam vez ou outra pelos ramos das árvores e iluminavam o chão de terra no qual a gente pisava. Como era bom sentir aquele calorzinho! Essa rua era bem comprida e no final tinha uma ponte muito estreita e um pouco sombria que era seguida de uma curva muito fechada. Desde que nos mudamos pra aquela cidade papai dizia que nunca poderíamos passar além da ponte, que o que tinha depois da curva era muito perigoso. Contudo nunca nos disse o que tinha do lado de lá. Eu e meus irmãos imaginávamos as coisas mais incríveis.
Meu primeiro pensamento foi achar que do outro lado morava um homem mal num castelo muito velho e assustador. Depois achei que era bobagem, mesmo porque se houvesse um castelo a gente enxergaria a torre, porque todo castelo tem torre. Depois passei a achar que era lá que morava o homem do saco, que ninguém nunca tinha visto, entretanto todos sabiam que ele existia, pois a vizinhança contava histórias de crianças que nunca mais voltaram pra casa porque foram levadas pelo homem do saco. Cheguei a pensar também que lá tinha morado um velho muito doido que matava gente e depois que ele morreu o espírito dele ficou preso na casa, porque ele era muito mal, e a casa ficou mal assombrada.
O fato é que nunca soubemos o que havia depois da curva de tão perigoso. Nunca nos aventuramos a passar aquela ponte. Nem sei se tínhamos medo do papai, da coisa feia que tinha do outro lado ou se nosso medo real era perder aquele encanto. Como era bom sentar no chão depois do bate bola e ficar imaginando as coisas todas que podiam existir naquele mundo diferente do nosso. Engraçado que durante todo o tempo que moramos por ali, que deve ter sido uns três anos, nunca vimos ninguém, nem coisa alguma indo pra lá da ponte ou vindo de lá. Isso aguçava ainda mais nossa imaginação e nos dava ainda mais medo.
Me mudei daquela casa com 10 anos de idade. Meu pai foi transferido pra uma cidade maior que nem tinha rua de terra, nem sombras de árvores e nem curva depois da ponte. Eu e meus irmãos não podíamos mais jogar bola na rua e o homem do saco nunca apareceu por lá. E talvez por isso, jamais nos esquecemos da curva da ponte. A gente ficava imaginando o que poderia ter acontecido com nossos amigos que continuavam morando na cidadezinha. Se eles haviam ido do outro lado e se tinham descoberto o que havia de tão perigoso depois daquela curva.
O fato é que cresci sem saber porquê papai não nos deixava ir lá. Quando fiquei adulto pensei em perguntar a ele várias vezes, mas achei melhor ficar imaginando, embora soubesse que não era nem um castelo, nem uma casa mal assombrada e nem o velho do saco.
Certa vez, depois de casado, resolvi levar meu filho de 5 anos pra passear na cidadezinha que eu havia morado quando criança. É claro que fui movido, mais que tudo, pela curiosidade de saber se ainda havia a ponte e a curva depois dela.
Ao chegar lá vi que tudo estava do mesmo jeito. A rua ainda era de terra, as árvores continuavam fazendo sombra, a ponte estava lá e a curva também. Fiquei olhando aquilo tudo e senti medo de atravessar. Meu filho me puxava pela mão em direção à ponte, mas eu, contrariando toda a pedagogia moderna, segurei a mão dele e não deixei que fosse. Tirei meus sapatos, pisei na terra que estava molhada, dobrei a barra da calça e me sentei no chão ao lado do meu menino. Disse a ele que ele não podia passar para o lado de lá porque era lá que morava o homem do saco. Ele assustado me perguntou quem era o homem do saco e enquanto eu contava pra ele, os raios de sol passavam pelos ramos das árvores e iluminavam o chão de terra no qual a gente pisava. Nunca foi tão bom sentir aquele calorzinho.
era mais bonita que a de Robinson Crusoé."
Carlos Drummond de Andrade
Quando eu era criança, as coisas eram muito diferentes do que são hoje. A gente não podia fazer nada. Criança não ficava na sala se metendo em conversa de adulto, não comia os melhores pedaços do frango, respeitavam os mais velhos e não podiam fazer malcriações porque ficavam de castigo ou levavam uma bela surra. Entretanto tínhamos o prazer de andar descalço na grama, correr pelas ruas sem medo de sermos atropelados, chupar fruta direto do pé, subir nas árvores, fugir do homem do saco e fazer coisas proibidas, mesmo sabendo que se corria o risco de levar uma sova. E se é verdade que “o menino é o pai do homem”, isso fez de nós adultos corajosos, porque mesmo com medo a gente não deixava de fazer o que tinha vontade. Éramos ardis! Usávamos das mais diferentes técnicas de fuga e de métodos para enganar os pais. Eles, acredito eu, deviam saber das nossas artimanhas, porém não nos tiravam o prazer de nos sentirmos os donos da história.
Perto da minha casa tinha uma ruazinha cheia de árvores onde eu adorava brincar de bola com meus irmãos. Era bom porque sempre tinha sombra, mas os raios de sol passavam vez ou outra pelos ramos das árvores e iluminavam o chão de terra no qual a gente pisava. Como era bom sentir aquele calorzinho! Essa rua era bem comprida e no final tinha uma ponte muito estreita e um pouco sombria que era seguida de uma curva muito fechada. Desde que nos mudamos pra aquela cidade papai dizia que nunca poderíamos passar além da ponte, que o que tinha depois da curva era muito perigoso. Contudo nunca nos disse o que tinha do lado de lá. Eu e meus irmãos imaginávamos as coisas mais incríveis.
Meu primeiro pensamento foi achar que do outro lado morava um homem mal num castelo muito velho e assustador. Depois achei que era bobagem, mesmo porque se houvesse um castelo a gente enxergaria a torre, porque todo castelo tem torre. Depois passei a achar que era lá que morava o homem do saco, que ninguém nunca tinha visto, entretanto todos sabiam que ele existia, pois a vizinhança contava histórias de crianças que nunca mais voltaram pra casa porque foram levadas pelo homem do saco. Cheguei a pensar também que lá tinha morado um velho muito doido que matava gente e depois que ele morreu o espírito dele ficou preso na casa, porque ele era muito mal, e a casa ficou mal assombrada.
O fato é que nunca soubemos o que havia depois da curva de tão perigoso. Nunca nos aventuramos a passar aquela ponte. Nem sei se tínhamos medo do papai, da coisa feia que tinha do outro lado ou se nosso medo real era perder aquele encanto. Como era bom sentar no chão depois do bate bola e ficar imaginando as coisas todas que podiam existir naquele mundo diferente do nosso. Engraçado que durante todo o tempo que moramos por ali, que deve ter sido uns três anos, nunca vimos ninguém, nem coisa alguma indo pra lá da ponte ou vindo de lá. Isso aguçava ainda mais nossa imaginação e nos dava ainda mais medo.
Me mudei daquela casa com 10 anos de idade. Meu pai foi transferido pra uma cidade maior que nem tinha rua de terra, nem sombras de árvores e nem curva depois da ponte. Eu e meus irmãos não podíamos mais jogar bola na rua e o homem do saco nunca apareceu por lá. E talvez por isso, jamais nos esquecemos da curva da ponte. A gente ficava imaginando o que poderia ter acontecido com nossos amigos que continuavam morando na cidadezinha. Se eles haviam ido do outro lado e se tinham descoberto o que havia de tão perigoso depois daquela curva.
O fato é que cresci sem saber porquê papai não nos deixava ir lá. Quando fiquei adulto pensei em perguntar a ele várias vezes, mas achei melhor ficar imaginando, embora soubesse que não era nem um castelo, nem uma casa mal assombrada e nem o velho do saco.
Certa vez, depois de casado, resolvi levar meu filho de 5 anos pra passear na cidadezinha que eu havia morado quando criança. É claro que fui movido, mais que tudo, pela curiosidade de saber se ainda havia a ponte e a curva depois dela.
Ao chegar lá vi que tudo estava do mesmo jeito. A rua ainda era de terra, as árvores continuavam fazendo sombra, a ponte estava lá e a curva também. Fiquei olhando aquilo tudo e senti medo de atravessar. Meu filho me puxava pela mão em direção à ponte, mas eu, contrariando toda a pedagogia moderna, segurei a mão dele e não deixei que fosse. Tirei meus sapatos, pisei na terra que estava molhada, dobrei a barra da calça e me sentei no chão ao lado do meu menino. Disse a ele que ele não podia passar para o lado de lá porque era lá que morava o homem do saco. Ele assustado me perguntou quem era o homem do saco e enquanto eu contava pra ele, os raios de sol passavam pelos ramos das árvores e iluminavam o chão de terra no qual a gente pisava. Nunca foi tão bom sentir aquele calorzinho.
2 comentários:
Não tenho outra palavra para descrever: Que singelo!!!
Beijos minha amiga linda!!
Nossa Nane, que legal esse conto!!! Me lembro de qdo a gente era criança e corria do Neguinho da Banana, lembra? Qta saudade!!!
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