Gostar é provavelmente a melhor maneira de
ter, ter deve ser a pior maneira de gostar
José Saramago
Rita olhou pela janela com olhar de desânimo. O tempo lá fora estava frio e chuvoso. Como de costume naquele sábado, logo após o almoço, ela sairia com os dois garotos, iria para a cidade fazer as compras da semana. O tempo realmente não era dos melhores, mas a obrigação de se cumprir a tarefa semanal não dava a ela direito de escolha.
Encostada no fogão de lenha sentiu o perfume de mato que ficava ainda mais forte misturado com o cheiro da água. O Quero-quero tentava proteger seu ninho e os bois, alheios ao tempo ruim, cumpriam seu ritual diário no pasto ao lado da casa. Mais abaixo o pesqueiro do seu Zé funcionava a todo vapor, embora poucos clientes se animassem a pescar com aquela chuva.
Absorta em seus pensamentos, Rita foi surpreendida por uma fagulha de lenha que pousou em seu braço. Se aquiete Rita, a felicidade é uma ilusão. Hoje é sábado, dia de ir à cidade e fazer compras.
Retirou o arroz do fogão e pousou a panela sobre a mesa. Antes mesmo que refogasse a couve os dois meninos já estavam sentados esperando que o almoço fosse servido. Olhou para o marido estirado no sofá da sala e, por um breve momento, permitiu imaginar sua vida sem ele.
Serviu finalmente o almoço. O marido, como de costume, reclamou que o arroz estava sem sal e Rita, como sempre, fingiu que nem se incomodou, já estava acostumada com as queixas dele. Porém, em seu íntimo, sentiu-se infeliz. Deu-se conta de que estava cansada daquela vida, daquele homem, daquele lugar. Cansada até mesmo dos filhos, embora fosse difícil para ela admitir. Olhou para eles e imaginou como seria se eles fossem duas meninas, ou se um deles pelo menos fosse uma menina. Pensou consigo que uma menina talvez a fizesse mais feliz. Já estava cansada dos mesmos assuntos masculinos. Também se deu conta de que estava cansada de ser sempre a única a servir, sempre a única a esperar, sempre a única a ouvir reclamações. Mulher nasceu pra isso, pra servir ao marido e aos filhos. Uma menina talvez a compreendesse melhor, talvez a ajudasse a servir.
O marido levantou-se da mesa, pegou o cigarro, a garrafa de pinga e sentou-se na frente da televisão. Logo começaria o futebol, era dia de decisão. Os meninos também se sentaram na frente do televisor, embora não estivessem tão interessados no futebol como o pai. O que eles queriam mesmo era brincar com o mini-game que o filho caçula do seu Zé havia emprestado pra eles.
Rita recolheu os pratos, talheres e panelas da mesa. Encostou-se na pia e começou a lavar a louça. Novamente se descuidou e deixou um copo cair e quebrar. Ê mulher! Você está um desastre hoje!
Ao recolher os cacos cortou dedo e viu o sangue escorrer. Num ato mecânico levou o dedo a boca na tentativa de estancar o sangue, mas desistiu. Ficou olhando para o dedo, para aquele líquido escarlate que era sua própria vida. Você está viva Rita! Viva!
Rita, Rita! Que posso eu fazer para amenizar suas dores?
Cíntia levantou-se do computador e abriu a janela. Lá embaixo os carros disputavam um espaço na rua. São Paulo é sempre assim, quando chove então! Olhou para o céu e viu que as negras nuvens lentamente iam dando lugar ao céu azul. Em breve a chuva cessaria.
Acendeu um cigarro e contemplou as flores da pequena jardineira do apartamento ao lado do seu. No canto do quarto, sentando no sofá, Tobias, seu Basset, acenava com o rabo pedindo sua atenção. Cíntia afagou-lhe o pescoço e beijou-lhe o focinho em agradecimento pela sua sempre fiel e leal companhia. Sentou-se ao lado do cão e viu uma foto de Gabriel em meio aos livros empilhados sobre a estante. Lembrou-se de que um dia tinham sido amigos, lembrou-se de que um dia nutriram grande afeto um pelo outro. Chorou mais uma vez, mas dessa vez não foi de saudades dele. Chorou de pena de si mesma que vira suas crenças ruírem-se frente seus olhos.
Cíntia era filha de dois militantes comunistas. O pai, professor universitário de antropologia, era marxista, e ensinara à filha que a vida é feita unicamente de homens. Somente a fé no humano é capaz de nos levar justiça. Morreu durante a ditadura militar sem saber que havia sido denunciado por um de seus melhores amigos. Morreu acreditando na humanidade, na igualdade, na solidariedade. E ela, que nunca deixara de acreditar na humanidade, sentia-se decepcionada, traída por Gabriel, que parecia valorizar esses princípios.
Gabriel e Cíntia se conheceram num congresso de filosofia. A partir daí tornaram-se grandes amigos. Compartilhavam das mesmas opiniões, tinham as mesmas crenças e gostavam dos mesmos livros. Era sempre muito bom ficar perto dele. Era um amigo sensível, que gostava de poesia e não achava perda de tempo discutir assuntos ligados a literatura, filosofia, sociologia, essas coisas tão raras de se ver nos dias de hoje. Entretanto outro sentimento, que não apenas o de amizade, acabou florescendo entre os dois. Não chegaram a experimentar esse sentimento juntos. Gabriel achou que era melhor afastar-se de Cíntia, mesmo depois de declarar-se, mesmo depois de dizer-se apaixonado e dizer a ela que a amava. Afastou-se, sem nem ao menos ter a dignidade de olhar nos olhos da amiga. Destruiu uma relação de afeto apenas com e-mails frios e agressivos.
Cíntia não conseguia compreender como alguém podia se desfazer de uma relação de afeto tão intensa de uma hora pra outra, uma pessoa não pode viver a outra com tanta profundidade, com tanta intensidade, e depois não viver mais. Pensou em como as relações humanas estavam cada vez mais desumanizadas, superficiais. Tudo na vida moderna se resolve com uma simples apertar de um botão. Porém seres humanos não têm botões. Será? Pensou! Se aproximara dele pela sua sensibilidade, mas viu que sensibilidade e humanidade não são sinônimos. “Mergulhamos na barbárie. A indiferença, a estupidez arrogante e boçal, a valorização do ter e do parecer, a banalização da vida, entre outras pérolas, sustentam um mundo que esqueceu os valores humanísticos construídos ao longo de séculos e que serviram de arcabouço para o advento da civilização e nortearam a luta por uma sociedade mais justa. Que falta nos faz (a todos) o exercício da amizade, da solidariedade, da capacidade de doação afetiva inteiramente desinteressada”. Que falta nos faz a preocupação com o outro, o olhar nos olhos, um simples abraço. Que falta me faz o amigo!
Olhou no relógio e já passava de uma e meia da tarde. Sentiu fome e esquentou uma daquelas lasanhas prontas no microondas. Sentou-se sozinha à mesa e comeu. Entretanto seu desejo era sentar-se à mesa com Rita. Comer a couve verdinha, o arroz branco soltinho e o delicioso feijão, temperado com muito alho, cebola e feito no fogão a lenha.
Rita terminou de lavar a louça e se arrumou para ir à cidade. Chamou Elias e Jonas, que estavam prontos fazia tempo e, descalços, foram caminhando pela terra molhada.
No domingo o dia amanheceu claro. O céu estava azul para a felicidade dos meninos que foram jogar bola no campinho improvisado do sítio vizinho. Jésus ligou a TV e ficou estirado no sofá ao lado da garrafa de pinga. Só Rita não podia se dar ao luxo de não fazer nada. Tinha que aproveitar o tempo bom para lavar as roupas, pois durante a semana tinha que trabalhar na casa do seu Zé.
Era dia de churrasco. Pelo menos aos domingos Rita não precisava cozinhar tanto no almoço. A ela cabia apenas refogar o arroz, já que temperar carne, fazer churrasco era serviço pra homem.
Durante o almoço sentiu-se aborrecida. Ela já não agüentava mais comer carne todo domingo. Sentiu uma vontade enorme de comer uma lasanha, mesmo que fosse daquelas prontas que ela via nas propagandas da TV e nas prateleiras dos supermercados.
Olhou para os dois filhos e viu nos olhos deles um brilho intenso. Assim como o pai eles adoravam o churrasco de domingo. Sentiu um arrependimento por não compartilhar da alegria deles. Arrependimento, essa maldição!!! A pior de todas as palavras – tem erres que se arrastam no tempo, fazem ruídos, rangem como dentes na casa silenciosa dos ouvidos da noite.
Depois do almoço, Jésus, já bêbado, desceu com os filhos para o pesqueiro. Era costume assistir ao futebol no domingo à tarde com os amigos.
Rita retirou a mesa e olhou a louça suja na pia, mas decidiu que não ia lavá-la. Saiu de casa e caminhou para o pasto que ficava na direção oposta ao pesqueiro. Pisou na grama ainda úmida e, embora estivesse acostumada a andar descalça, sentiu pela primeira vez a maciez da grama. Deitou-se e ficou ali brincando de dar forma as nuvens.
A tarde estava findando. Logo Jésus voltaria com as crianças e o jantar ainda não estava pronto. Entretanto Rita sentiu naquele momento um desejo enorme de não cozinhar. Queria ficar ali, deitada na grama molhada, bebendo o vento azul.
Cíntia levantou-se e olhou pela janela. Resolveu sair. O dia estava lindo demais para ficar ali pensando no que a vida já havia lhe roubado. Lembrou-se dos amigos que ainda tinha e sentiu-se feliz por não ser a única que ainda tinha fé na humanidade, por não ser a única que valorizava uma verdadeira amizade. Pensou ingenuamente que algum dia, talvez, Gabriel pudesse se dar conta do pacto de amizade que rompera e num ato humano a procuraria, pessoalmente, e não fria e mecanicamente por meio de e-mails como havia feito. Pensou que ele também sentia falta do seu abraço, de ouvir a sua voz, de conversar com ela, de ler poemas. Cíntia, deixa de ser boba! Você tornou-se um parafuso dispensável.
Ligou para Lídia e marcaram um cinema para aquela noite. Vestiu sua roupa de caminhada e foi com Tobias para o Ibirapuera. Queria caminhar, sentir o cheiro de mato. Tirou o tênis e deixou a grama massagear seus pés. Deitou-se. Fez planos de ir para a Europa no fim do ano, queria reencontrar os amigos do velho mundo e, principalmente, rever Heitor .
Ficou ali brincando de dar forma à vida e bebendo o vento azul.
ter, ter deve ser a pior maneira de gostar
José Saramago
Rita olhou pela janela com olhar de desânimo. O tempo lá fora estava frio e chuvoso. Como de costume naquele sábado, logo após o almoço, ela sairia com os dois garotos, iria para a cidade fazer as compras da semana. O tempo realmente não era dos melhores, mas a obrigação de se cumprir a tarefa semanal não dava a ela direito de escolha.
Encostada no fogão de lenha sentiu o perfume de mato que ficava ainda mais forte misturado com o cheiro da água. O Quero-quero tentava proteger seu ninho e os bois, alheios ao tempo ruim, cumpriam seu ritual diário no pasto ao lado da casa. Mais abaixo o pesqueiro do seu Zé funcionava a todo vapor, embora poucos clientes se animassem a pescar com aquela chuva.
Absorta em seus pensamentos, Rita foi surpreendida por uma fagulha de lenha que pousou em seu braço. Se aquiete Rita, a felicidade é uma ilusão. Hoje é sábado, dia de ir à cidade e fazer compras.
Retirou o arroz do fogão e pousou a panela sobre a mesa. Antes mesmo que refogasse a couve os dois meninos já estavam sentados esperando que o almoço fosse servido. Olhou para o marido estirado no sofá da sala e, por um breve momento, permitiu imaginar sua vida sem ele.
Serviu finalmente o almoço. O marido, como de costume, reclamou que o arroz estava sem sal e Rita, como sempre, fingiu que nem se incomodou, já estava acostumada com as queixas dele. Porém, em seu íntimo, sentiu-se infeliz. Deu-se conta de que estava cansada daquela vida, daquele homem, daquele lugar. Cansada até mesmo dos filhos, embora fosse difícil para ela admitir. Olhou para eles e imaginou como seria se eles fossem duas meninas, ou se um deles pelo menos fosse uma menina. Pensou consigo que uma menina talvez a fizesse mais feliz. Já estava cansada dos mesmos assuntos masculinos. Também se deu conta de que estava cansada de ser sempre a única a servir, sempre a única a esperar, sempre a única a ouvir reclamações. Mulher nasceu pra isso, pra servir ao marido e aos filhos. Uma menina talvez a compreendesse melhor, talvez a ajudasse a servir.
O marido levantou-se da mesa, pegou o cigarro, a garrafa de pinga e sentou-se na frente da televisão. Logo começaria o futebol, era dia de decisão. Os meninos também se sentaram na frente do televisor, embora não estivessem tão interessados no futebol como o pai. O que eles queriam mesmo era brincar com o mini-game que o filho caçula do seu Zé havia emprestado pra eles.
Rita recolheu os pratos, talheres e panelas da mesa. Encostou-se na pia e começou a lavar a louça. Novamente se descuidou e deixou um copo cair e quebrar. Ê mulher! Você está um desastre hoje!
Ao recolher os cacos cortou dedo e viu o sangue escorrer. Num ato mecânico levou o dedo a boca na tentativa de estancar o sangue, mas desistiu. Ficou olhando para o dedo, para aquele líquido escarlate que era sua própria vida. Você está viva Rita! Viva!
Rita, Rita! Que posso eu fazer para amenizar suas dores?
Cíntia levantou-se do computador e abriu a janela. Lá embaixo os carros disputavam um espaço na rua. São Paulo é sempre assim, quando chove então! Olhou para o céu e viu que as negras nuvens lentamente iam dando lugar ao céu azul. Em breve a chuva cessaria.
Acendeu um cigarro e contemplou as flores da pequena jardineira do apartamento ao lado do seu. No canto do quarto, sentando no sofá, Tobias, seu Basset, acenava com o rabo pedindo sua atenção. Cíntia afagou-lhe o pescoço e beijou-lhe o focinho em agradecimento pela sua sempre fiel e leal companhia. Sentou-se ao lado do cão e viu uma foto de Gabriel em meio aos livros empilhados sobre a estante. Lembrou-se de que um dia tinham sido amigos, lembrou-se de que um dia nutriram grande afeto um pelo outro. Chorou mais uma vez, mas dessa vez não foi de saudades dele. Chorou de pena de si mesma que vira suas crenças ruírem-se frente seus olhos.
Cíntia era filha de dois militantes comunistas. O pai, professor universitário de antropologia, era marxista, e ensinara à filha que a vida é feita unicamente de homens. Somente a fé no humano é capaz de nos levar justiça. Morreu durante a ditadura militar sem saber que havia sido denunciado por um de seus melhores amigos. Morreu acreditando na humanidade, na igualdade, na solidariedade. E ela, que nunca deixara de acreditar na humanidade, sentia-se decepcionada, traída por Gabriel, que parecia valorizar esses princípios.
Gabriel e Cíntia se conheceram num congresso de filosofia. A partir daí tornaram-se grandes amigos. Compartilhavam das mesmas opiniões, tinham as mesmas crenças e gostavam dos mesmos livros. Era sempre muito bom ficar perto dele. Era um amigo sensível, que gostava de poesia e não achava perda de tempo discutir assuntos ligados a literatura, filosofia, sociologia, essas coisas tão raras de se ver nos dias de hoje. Entretanto outro sentimento, que não apenas o de amizade, acabou florescendo entre os dois. Não chegaram a experimentar esse sentimento juntos. Gabriel achou que era melhor afastar-se de Cíntia, mesmo depois de declarar-se, mesmo depois de dizer-se apaixonado e dizer a ela que a amava. Afastou-se, sem nem ao menos ter a dignidade de olhar nos olhos da amiga. Destruiu uma relação de afeto apenas com e-mails frios e agressivos.
Cíntia não conseguia compreender como alguém podia se desfazer de uma relação de afeto tão intensa de uma hora pra outra, uma pessoa não pode viver a outra com tanta profundidade, com tanta intensidade, e depois não viver mais. Pensou em como as relações humanas estavam cada vez mais desumanizadas, superficiais. Tudo na vida moderna se resolve com uma simples apertar de um botão. Porém seres humanos não têm botões. Será? Pensou! Se aproximara dele pela sua sensibilidade, mas viu que sensibilidade e humanidade não são sinônimos. “Mergulhamos na barbárie. A indiferença, a estupidez arrogante e boçal, a valorização do ter e do parecer, a banalização da vida, entre outras pérolas, sustentam um mundo que esqueceu os valores humanísticos construídos ao longo de séculos e que serviram de arcabouço para o advento da civilização e nortearam a luta por uma sociedade mais justa. Que falta nos faz (a todos) o exercício da amizade, da solidariedade, da capacidade de doação afetiva inteiramente desinteressada”. Que falta nos faz a preocupação com o outro, o olhar nos olhos, um simples abraço. Que falta me faz o amigo!
Olhou no relógio e já passava de uma e meia da tarde. Sentiu fome e esquentou uma daquelas lasanhas prontas no microondas. Sentou-se sozinha à mesa e comeu. Entretanto seu desejo era sentar-se à mesa com Rita. Comer a couve verdinha, o arroz branco soltinho e o delicioso feijão, temperado com muito alho, cebola e feito no fogão a lenha.
Rita terminou de lavar a louça e se arrumou para ir à cidade. Chamou Elias e Jonas, que estavam prontos fazia tempo e, descalços, foram caminhando pela terra molhada.
No domingo o dia amanheceu claro. O céu estava azul para a felicidade dos meninos que foram jogar bola no campinho improvisado do sítio vizinho. Jésus ligou a TV e ficou estirado no sofá ao lado da garrafa de pinga. Só Rita não podia se dar ao luxo de não fazer nada. Tinha que aproveitar o tempo bom para lavar as roupas, pois durante a semana tinha que trabalhar na casa do seu Zé.
Era dia de churrasco. Pelo menos aos domingos Rita não precisava cozinhar tanto no almoço. A ela cabia apenas refogar o arroz, já que temperar carne, fazer churrasco era serviço pra homem.
Durante o almoço sentiu-se aborrecida. Ela já não agüentava mais comer carne todo domingo. Sentiu uma vontade enorme de comer uma lasanha, mesmo que fosse daquelas prontas que ela via nas propagandas da TV e nas prateleiras dos supermercados.
Olhou para os dois filhos e viu nos olhos deles um brilho intenso. Assim como o pai eles adoravam o churrasco de domingo. Sentiu um arrependimento por não compartilhar da alegria deles. Arrependimento, essa maldição!!! A pior de todas as palavras – tem erres que se arrastam no tempo, fazem ruídos, rangem como dentes na casa silenciosa dos ouvidos da noite.
Depois do almoço, Jésus, já bêbado, desceu com os filhos para o pesqueiro. Era costume assistir ao futebol no domingo à tarde com os amigos.
Rita retirou a mesa e olhou a louça suja na pia, mas decidiu que não ia lavá-la. Saiu de casa e caminhou para o pasto que ficava na direção oposta ao pesqueiro. Pisou na grama ainda úmida e, embora estivesse acostumada a andar descalça, sentiu pela primeira vez a maciez da grama. Deitou-se e ficou ali brincando de dar forma as nuvens.
A tarde estava findando. Logo Jésus voltaria com as crianças e o jantar ainda não estava pronto. Entretanto Rita sentiu naquele momento um desejo enorme de não cozinhar. Queria ficar ali, deitada na grama molhada, bebendo o vento azul.
Cíntia levantou-se e olhou pela janela. Resolveu sair. O dia estava lindo demais para ficar ali pensando no que a vida já havia lhe roubado. Lembrou-se dos amigos que ainda tinha e sentiu-se feliz por não ser a única que ainda tinha fé na humanidade, por não ser a única que valorizava uma verdadeira amizade. Pensou ingenuamente que algum dia, talvez, Gabriel pudesse se dar conta do pacto de amizade que rompera e num ato humano a procuraria, pessoalmente, e não fria e mecanicamente por meio de e-mails como havia feito. Pensou que ele também sentia falta do seu abraço, de ouvir a sua voz, de conversar com ela, de ler poemas. Cíntia, deixa de ser boba! Você tornou-se um parafuso dispensável.
Ligou para Lídia e marcaram um cinema para aquela noite. Vestiu sua roupa de caminhada e foi com Tobias para o Ibirapuera. Queria caminhar, sentir o cheiro de mato. Tirou o tênis e deixou a grama massagear seus pés. Deitou-se. Fez planos de ir para a Europa no fim do ano, queria reencontrar os amigos do velho mundo e, principalmente, rever Heitor .
Ficou ali brincando de dar forma à vida e bebendo o vento azul.