sábado, 10 de novembro de 2007

Borboleta


Quando eu era menina, tentei, certa vez, criar uma borboleta. Capturei-a no jardim da vizinha. A pobrezinha ficou tão assustada que não se moveu. Eu, em minha ingenuidade, coloquei o dedo sobre o corpinho do pequeno inseto na esperança de sentir seu coração bater.
Coloquei-a em um vidro de maionese, fiz alguns furos na tampa para entrar ar e joguei algumas folhinhas de árvore para ela comer. Não sei quem disse que borboleta come folhas de árvore, mas eu achava que sim.
Entrei em casa com o vidro nas mãos e mostrei para a mamãe. Ela me olhou com um sorriso e balançou a cabeça num gesto que só mais tarde vim a saber o que significava.
Passei o resto do dia observando minha mais nova amiginha. Não conseguia me separar dela. Me sentia tão feliz e pensava que ela também sentia. Na hora de dormir foi um sacrifício, mamãe teve que me das umas palmadas para eu ir para a cama.
No dia seguinte levantei e fui olhar minha borboletinha. Cheguei perto do vidro e ela estava estática, com as perninhas dobradas e duras. Tentei fazê-la voltar à vida, mas foi inútil. Chorei o resto do dia e fiz um enterro para a pobrezinha. Coloquei-a numa caixa de fósforo, a cobri com flores e enterrei no jardim da minha casa.
Uma semana depois, quando o fato já estava completamente esquecido, um besouro pousou na minha mão.

PS: Encontrei esse texto no meio de uns papeis antigos. Ele foi escrito em 21 de dezembro de 1989

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Entre riscos e rabiscos ou Do amor e outros alimentos II

Lígia me esperava com tapeçarias, Ilha-de-madeira sobre a mesa, lustres, mármores e brilhantes, e eu só queria pão. Desenfreados, os ponteiros giravam no relógio. A hora se aproximava, e eu, sufocado pela gravata trocava de roupa pela quinta vez.
Toquei a campainha. O empregado vestido de casaca abriu a porta e pediu que entrasse. Parei no corredor e fiquei a espera de Lígia. Não sabia em qual porta entrar ou qual corredor seguir, e, mesmo que soubesse, não conseguiria me mover.
Lígia desceu as escadas, deslumbrante em seu vestido de seda pura. Eu, em minha volúpia, imaginei como ficaria seu corpo sem o vestido. Entramos em uma das portas e saímos numa sala enorme, cheia de sofás, tapetes e cristaleiras cheias de quinquilharias antigas. Sentei no sofá mais próximo da porta, me sentia mais seguro. Ela me serviu um de seus licores. Virei o cálice e tomei. Não tinha tempo para saboreá-lo.
Fomos para a sala de jantar. Senti-me inseguro diante de tantos talheres, não sabia como usá-los. As taças eram de cristal e as louças eram de porcelana compradas em um antiquário em Colônia, e eu, mal sabia onde ficava Colônia.
Levantei-me da mesa, afrouxei a gravata, olhei-a pela última vez. Seus olhos me imploravam que ficasse, mas ao mesmo tempo sabiam que tinha que ir.
Sai meio sem rumo. A noite estava bela. No céu a ausência da lua dava lugar ao brilho das estrelas. Aquela não era mais a minha Ligia. Não, não era a garotinha sardenta com quem eu soltava papagaio e jogava futebol. Ela nem ao menos tinha mais sardas.
Era estranho reencontrá-la daquela forma. Fomos separados tão repentinamente em algum momento ignorado do tempo em que vivíamos na nossa cidade pacata do interior de Minas. Algum momento de descuido a pontear as cordas do violão com os dedos, não sentindo que por eles deslizava meu caminho e caia no chão, onde não poderia achá-lo intocado.
Aquela sensação de dúvida, de perda, não sei exatamente do que, faziam com que eu olhasse o céu estrelado e visse, como fosse o céu da noite a porta dum relicário quase inexplorado dentro de mim. Todas e totalmente desorganizadas, as lembranças das brincadeiras, da enorme pipa branca que papai me ajudara a fazer, da casa da mãe de Lígia e esta tão somente uma garotinha sardenta, esperta, sonhadora e feliz.
Deixei-me a organizar as lembranças, como quem organiza seu quarto, e quando me dei conta já havia amanhecido. Talvez até adormecera. E aquela noite foi uma mortalha para toda minha confusão. Já sabia exatamente o que sentia, só não sabia se deveria procurá-la novamente.
Entrei no carro e vi que ainda estava cedo, 6:30 da manhã. Fui direto para minha casa, abri as janelas. Vi sobre a cama as roupas que colocara antes de ir me encontrar com Lígia e sobre a mesa de desenho três projetos inacabados e ainda tinha que refazer os cálculos de uma casa na zona sul.
Fui para a cozinha e enquanto preparava um suco pensava se trabalharia nos projetos ou arrumaria aquelas roupas e dormiria até a tarde. Tomei o suco na varanda, de onde via o mar e sentia sua brisa. Só conheci o mar com 19 anos, quando entrei para a Faculdade de Arquitetura no Rio de Janeiro. Eram incrivelmente maiores do que eu imaginava, o mar e o Rio. Tanto que me assustaram a princípio.
Ver o mar ali da minha varanda, a poucos metros da casa, já não me assustava, projetei a casa pensando mesmo nisso. O que me assustava mesmo era pensar que ainda amava Lígia e poderia passar de novo pelo sofrimento de perdê-la.
O som do mar cadenciava cada relance que lembrava. Quando ela parou de responder minhas cartas, quando voltei a Montes Claros e sua mãe me disse que ela conhecera um homem rico de São Paulo... e quando a encontrei há uma semana numa livraria. Tudo tão rápido. Um reencontro tão inesperado (como deve ser o bom reencontro) depois de 11 anos. Quis sair da livraria e ludibriar a mim mesmo, mas ela me chamou... e acabamos combinando o jantar de ontem, tão monótono, tão diferente. Normal era ir a sua casa à tarde comer pão com mortadela e ouvir discos, até não sentir mais o relógio no pulso e sentir-me livre do tempo.Mas aquilo já me parecia impossível.
Fiquei um pouco mais na varanda, observando como num dado ponto do horizonte a água e o céu se juntam, praticamente, tão tênue é o liame entre eles. Aquilo me valeu como uma noite de sono profundo e logo saí dali, direto para a mesa de projeto.
No dia seguinte, segunda-feira, fui ao escritório e, quando cheguei, recebi um telefonema de meu tio Fernando que queria que eu projetasse uma casa para seu filho e pretendia mostrar-me o terreno naquele fim de semana em Montes Claros.
Pensei na viagem durante todos os dias daquela semana, o que de certa forma fez com que as horas se alongassem na espera. Era óbvio que a vida como uma linha sinuosa voltava a tocar um trecho de meu passado, e, como todas ás vezes em que isso acontece eu não deveria ser o mesmo após esse encontro. Era como se os fantasmas do passado voltassem de alguma forma insatisfeitos, mas porque só agora reapareceria?Talvez de algum modo só voltem no momento em que nos consideram capazes de desatar o nó que os prende ao mastro da frustração.
Finalmente chegara o fim da semana decidi que era melhor partir na sexta pois já estava ansioso por alguma coisa que não conhecia. A mala já estava pronta há alguns dias, foi a forma que encontrei para não me sentir inerte à ansiedade que era agravada por não ter notícias de Lígia. Havia pensado nela todos os dias, porém me sentia confuso por não entender em que direção ia aquele sentimento.
Peguei o ônibus logo de manhã, o sol de primavera brilhava solene pela janela, não havia nuvens e toda a paisagem me lembrava as visitas que fizera com freqüência durante a faculdade mas que hoje eram raras. Porque de repente a ânsia por rever Montes Claros? Não pertencia mais a aquela cidade nem aquela vida mas era forte o desejo de rever as pegadas que havia deixado naquela terra.
Saí do ônibus e da rodoviária como se nunca houvesse feito aquele caminho antes olhava para os lados e observava a cidade em movimento. Não avisara ninguém a que horas chegaria por isso estava livre para um passeio antes de ir aos “negócios”. Minhas pernas pareciam ainda conhecer aqueles caminhos, porém meus olhos desconheciam aquelas lojas aquele movimento aquela gente, a cidade havia mudado, eu também...
Sem premeditação cheguei a uma praça que me pareceu uma ilha de sossego, então resolvi me sentar em um banco. Sentei ali e pude ver com mais calma onde estava. A praça era uma velha conhecida, fora um importante cenário de minha infância e adolescência. Estava um tanto diferente de minhas lembranças, as árvores haviam se tornado opacas e pareciam já velhas e castigadas pelo movimento nas ruas adjacentes e os canteiros haviam sido pintados de cores um tanto chamativas como se algum político quisesse fazer notar sua obras.
Memórias passaram a fluir em minha mente naquela tarde ensolarada. Eu corria atrás de Lígia depois de sairmos da missa, tínhamos seis anos, podia ouvir nossas risadas. Recordações mornas e agradáveis haviam se passado naquele local. A praça nos vira crescer sem que nós a notássemos ou notássemos que estávamos crescendo.
Me pus a caminhar por entre os caminhos sombreados, feixes de luz escorriam por frestas nas árvores.Era como se estivesse assistindo a um filme no qual eu e Lígia protagonizávamos uma história de liberdade sem pretensões. Brincávamos por entre as grades do coreto e de súbito fomos até uma árvore retorcida e baixa. Ligia e eu escrevíamos nossos nomes lado a lado com o canivete que recebi de meu avô.
A cena desapareceu, mas o cenário permanecia. Mirei a árvore retorcida. Ela havia crescido um pouco. Tomou-me o desejo de ver nossos nomes escritos e não exitei em ir até a árvore. Lá estavam eles, não como havíamos talhado, o tempo passou e a árvore se tornou mais espessa, alargou e distanciou nossos nomes. E de súbito a linha sinuosa da vida se desligou do ponto do passado que estivera entrelaçada por alguns dias, e permaneceu sendo traçada entre riscos e rabiscos.

PS:ESSE CONTO FOI ECRITO POR MIM, ELAINE DUARTE, E MEUS DOIS COMPANHEIROS DE AVENTURAS LITERÁRIAS, RICARDO LIMA E RAPHAEL COBRA.


sexta-feira, 18 de maio de 2007

Vento Azul

Gostar é provavelmente a melhor maneira de
ter, ter deve ser a pior maneira de gostar

José Saramago




Rita olhou pela janela com olhar de desânimo. O tempo lá fora estava frio e chuvoso. Como de costume naquele sábado, logo após o almoço, ela sairia com os dois garotos, iria para a cidade fazer as compras da semana. O tempo realmente não era dos melhores, mas a obrigação de se cumprir a tarefa semanal não dava a ela direito de escolha.
Encostada no fogão de lenha sentiu o perfume de mato que ficava ainda mais forte misturado com o cheiro da água. O Quero-quero tentava proteger seu ninho e os bois, alheios ao tempo ruim, cumpriam seu ritual diário no pasto ao lado da casa. Mais abaixo o pesqueiro do seu Zé funcionava a todo vapor, embora poucos clientes se animassem a pescar com aquela chuva.
Absorta em seus pensamentos, Rita foi surpreendida por uma fagulha de lenha que pousou em seu braço. Se aquiete Rita, a felicidade é uma ilusão. Hoje é sábado, dia de ir à cidade e fazer compras.
Retirou o arroz do fogão e pousou a panela sobre a mesa. Antes mesmo que refogasse a couve os dois meninos já estavam sentados esperando que o almoço fosse servido. Olhou para o marido estirado no sofá da sala e, por um breve momento, permitiu imaginar sua vida sem ele.
Serviu finalmente o almoço. O marido, como de costume, reclamou que o arroz estava sem sal e Rita, como sempre, fingiu que nem se incomodou, já estava acostumada com as queixas dele. Porém, em seu íntimo, sentiu-se infeliz. Deu-se conta de que estava cansada daquela vida, daquele homem, daquele lugar. Cansada até mesmo dos filhos, embora fosse difícil para ela admitir. Olhou para eles e imaginou como seria se eles fossem duas meninas, ou se um deles pelo menos fosse uma menina. Pensou consigo que uma menina talvez a fizesse mais feliz. Já estava cansada dos mesmos assuntos masculinos. Também se deu conta de que estava cansada de ser sempre a única a servir, sempre a única a esperar, sempre a única a ouvir reclamações. Mulher nasceu pra isso, pra servir ao marido e aos filhos. Uma menina talvez a compreendesse melhor, talvez a ajudasse a servir.
O marido levantou-se da mesa, pegou o cigarro, a garrafa de pinga e sentou-se na frente da televisão. Logo começaria o futebol, era dia de decisão. Os meninos também se sentaram na frente do televisor, embora não estivessem tão interessados no futebol como o pai. O que eles queriam mesmo era brincar com o mini-game que o filho caçula do seu Zé havia emprestado pra eles.
Rita recolheu os pratos, talheres e panelas da mesa. Encostou-se na pia e começou a lavar a louça. Novamente se descuidou e deixou um copo cair e quebrar. Ê mulher! Você está um desastre hoje!
Ao recolher os cacos cortou dedo e viu o sangue escorrer. Num ato mecânico levou o dedo a boca na tentativa de estancar o sangue, mas desistiu. Ficou olhando para o dedo, para aquele líquido escarlate que era sua própria vida. Você está viva Rita! Viva!
Rita, Rita! Que posso eu fazer para amenizar suas dores?
Cíntia levantou-se do computador e abriu a janela. Lá embaixo os carros disputavam um espaço na rua. São Paulo é sempre assim, quando chove então! Olhou para o céu e viu que as negras nuvens lentamente iam dando lugar ao céu azul. Em breve a chuva cessaria.
Acendeu um cigarro e contemplou as flores da pequena jardineira do apartamento ao lado do seu. No canto do quarto, sentando no sofá, Tobias, seu Basset, acenava com o rabo pedindo sua atenção. Cíntia afagou-lhe o pescoço e beijou-lhe o focinho em agradecimento pela sua sempre fiel e leal companhia. Sentou-se ao lado do cão e viu uma foto de Gabriel em meio aos livros empilhados sobre a estante. Lembrou-se de que um dia tinham sido amigos, lembrou-se de que um dia nutriram grande afeto um pelo outro. Chorou mais uma vez, mas dessa vez não foi de saudades dele. Chorou de pena de si mesma que vira suas crenças ruírem-se frente seus olhos.
Cíntia era filha de dois militantes comunistas. O pai, professor universitário de antropologia, era marxista, e ensinara à filha que a vida é feita unicamente de homens. Somente a fé no humano é capaz de nos levar justiça. Morreu durante a ditadura militar sem saber que havia sido denunciado por um de seus melhores amigos. Morreu acreditando na humanidade, na igualdade, na solidariedade. E ela, que nunca deixara de acreditar na humanidade, sentia-se decepcionada, traída por Gabriel, que parecia valorizar esses princípios.
Gabriel e Cíntia se conheceram num congresso de filosofia. A partir daí tornaram-se grandes amigos. Compartilhavam das mesmas opiniões, tinham as mesmas crenças e gostavam dos mesmos livros. Era sempre muito bom ficar perto dele. Era um amigo sensível, que gostava de poesia e não achava perda de tempo discutir assuntos ligados a literatura, filosofia, sociologia, essas coisas tão raras de se ver nos dias de hoje. Entretanto outro sentimento, que não apenas o de amizade, acabou florescendo entre os dois. Não chegaram a experimentar esse sentimento juntos. Gabriel achou que era melhor afastar-se de Cíntia, mesmo depois de declarar-se, mesmo depois de dizer-se apaixonado e dizer a ela que a amava. Afastou-se, sem nem ao menos ter a dignidade de olhar nos olhos da amiga. Destruiu uma relação de afeto apenas com e-mails frios e agressivos.
Cíntia não conseguia compreender como alguém podia se desfazer de uma relação de afeto tão intensa de uma hora pra outra, uma pessoa não pode viver a outra com tanta profundidade, com tanta intensidade, e depois não viver mais. Pensou em como as relações humanas estavam cada vez mais desumanizadas, superficiais. Tudo na vida moderna se resolve com uma simples apertar de um botão. Porém seres humanos não têm botões. Será? Pensou! Se aproximara dele pela sua sensibilidade, mas viu que sensibilidade e humanidade não são sinônimos. “Mergulhamos na barbárie. A indiferença, a estupidez arrogante e boçal, a valorização do ter e do parecer, a banalização da vida, entre outras pérolas, sustentam um mundo que esqueceu os valores humanísticos construídos ao longo de séculos e que serviram de arcabouço para o advento da civilização e nortearam a luta por uma sociedade mais justa. Que falta nos faz (a todos) o exercício da amizade, da solidariedade, da capacidade de doação afetiva inteiramente desinteressada”. Que falta nos faz a preocupação com o outro, o olhar nos olhos, um simples abraço. Que falta me faz o amigo!
Olhou no relógio e já passava de uma e meia da tarde. Sentiu fome e esquentou uma daquelas lasanhas prontas no microondas. Sentou-se sozinha à mesa e comeu. Entretanto seu desejo era sentar-se à mesa com Rita. Comer a couve verdinha, o arroz branco soltinho e o delicioso feijão, temperado com muito alho, cebola e feito no fogão a lenha.
Rita terminou de lavar a louça e se arrumou para ir à cidade. Chamou Elias e Jonas, que estavam prontos fazia tempo e, descalços, foram caminhando pela terra molhada.
No domingo o dia amanheceu claro. O céu estava azul para a felicidade dos meninos que foram jogar bola no campinho improvisado do sítio vizinho. Jésus ligou a TV e ficou estirado no sofá ao lado da garrafa de pinga. Só Rita não podia se dar ao luxo de não fazer nada. Tinha que aproveitar o tempo bom para lavar as roupas, pois durante a semana tinha que trabalhar na casa do seu Zé.
Era dia de churrasco. Pelo menos aos domingos Rita não precisava cozinhar tanto no almoço. A ela cabia apenas refogar o arroz, já que temperar carne, fazer churrasco era serviço pra homem.
Durante o almoço sentiu-se aborrecida. Ela já não agüentava mais comer carne todo domingo. Sentiu uma vontade enorme de comer uma lasanha, mesmo que fosse daquelas prontas que ela via nas propagandas da TV e nas prateleiras dos supermercados.
Olhou para os dois filhos e viu nos olhos deles um brilho intenso. Assim como o pai eles adoravam o churrasco de domingo. Sentiu um arrependimento por não compartilhar da alegria deles. Arrependimento, essa maldição!!! A pior de todas as palavras – tem erres que se arrastam no tempo, fazem ruídos, rangem como dentes na casa silenciosa dos ouvidos da noite.
Depois do almoço, Jésus, já bêbado, desceu com os filhos para o pesqueiro. Era costume assistir ao futebol no domingo à tarde com os amigos.
Rita retirou a mesa e olhou a louça suja na pia, mas decidiu que não ia lavá-la. Saiu de casa e caminhou para o pasto que ficava na direção oposta ao pesqueiro. Pisou na grama ainda úmida e, embora estivesse acostumada a andar descalça, sentiu pela primeira vez a maciez da grama. Deitou-se e ficou ali brincando de dar forma as nuvens.
A tarde estava findando. Logo Jésus voltaria com as crianças e o jantar ainda não estava pronto. Entretanto Rita sentiu naquele momento um desejo enorme de não cozinhar. Queria ficar ali, deitada na grama molhada, bebendo o vento azul.
Cíntia levantou-se e olhou pela janela. Resolveu sair. O dia estava lindo demais para ficar ali pensando no que a vida já havia lhe roubado. Lembrou-se dos amigos que ainda tinha e sentiu-se feliz por não ser a única que ainda tinha fé na humanidade, por não ser a única que valorizava uma verdadeira amizade. Pensou ingenuamente que algum dia, talvez, Gabriel pudesse se dar conta do pacto de amizade que rompera e num ato humano a procuraria, pessoalmente, e não fria e mecanicamente por meio de e-mails como havia feito. Pensou que ele também sentia falta do seu abraço, de ouvir a sua voz, de conversar com ela, de ler poemas. Cíntia, deixa de ser boba! Você tornou-se um parafuso dispensável.
Ligou para Lídia e marcaram um cinema para aquela noite. Vestiu sua roupa de caminhada e foi com Tobias para o Ibirapuera. Queria caminhar, sentir o cheiro de mato. Tirou o tênis e deixou a grama massagear seus pés. Deitou-se. Fez planos de ir para a Europa no fim do ano, queria reencontrar os amigos do velho mundo e, principalmente, rever Heitor .
Ficou ali brincando de dar forma à vida e bebendo o vento azul.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Do amor e outros alimentos

"E eis que de repente
eles param
e mudos, graves,
espantados
se olham nos olhos...”

Clarice Lispector


Vivian o esperava com tapeçarias, Ilha-de-madeira sobre a mesa, lustres, mármores e brilhantes, e Leandro só queria pão. Desenfreados, os ponteiros giravam no relógio. A hora se aproximava, e ele, sufocado pela gravata, trocava de roupa pela quinta vez.
No caminho passou por uma floreira na janela de uma casa. Decidiu roubar uma margarida e levar para Vivian. Não conseguia conter a ansiedade de revê-la. Como era linda! A pele branca e suave, os olhos amendoados e expressivos, a boca delicada e convidativa o faziam perder o sono. Há dias que não pensava em mais nada, só nela.
Tocou a campainha. O empregado abriu a porta e pediu que entrasse. Parou no corredor e ficou a espera de Vivian. Não sabia em qual porta entrar ou qual corredor seguir, e, mesmo que soubesse, não conseguiria se mover.
Vivian desceu as escadas, deslumbrante em seu vestido branco até o joelho com flores vermelhas bordadas na barra. Os cabelos presos mostravam os ombros brancos, macios e delicados. Leandro deu a ela a margaridinha roubada. Vivian agradeceu e colocou-a num vaso junto com outras tantas flores.
Entraram em uma das portas e saíram numa sala enorme, cheia de sofás, tapetes, cristaleiras e quinquilharias antigas. Sentou-se no sofá mais próximo da porta, sentia-se mais seguro. Ela serviu então um de seus licores. Leandro virou o cálice e tomou num só gole. Não conseguia saboreá-lo.
Foram para a sala de jantar. Sentiu-se inseguro diante de tantos talheres, não sabia como usá-los. As taças eram de cristal e as louças eram de porcelana compradas em um antiquário em Hangzhou, e ele nem sabia onde ficava Hangzhou .
Levantou-se da mesa e olhou-a. Sentiu vontade de ir embora, apesar de deseja-la mais que tudo, mas achou que seria deselegante. Perguntou onde era o banheiro para disfarçar. Quando voltou encontrou Vivian sentada na sala escolhendo um CD para embalar o restante da noite. Leandro sorriu por dentro. Imaginou que seria uma ótima oportunidade para tomá-la nos braços e beijá-la. Ao invés disso foi tomado por um sentimento de impotência quando ela disse que não sabia dançar e colocou logo uma melodia nada romântica. Ficaram ali sentados, conversando futilidades.
Uma hora depois Vivian delicadamente sugeriu que era tarde. Leandro afrouxou a gravata e saiu meio sem rumo observando como aquela noite estava bela. No céu a ausência da lua dava lugar ao brilho das estrelas. Aquela era Vivan! Linda, deus, como era linda! Como a desejava! Sonhava com suas belas mãos brancas acariciando suas costas e afagando-lhe a nuca. A boca delicada sussurando doces palavras em seus ouvidos e beijando carinhosamente sua testa.
Decidiu ir embora pra casa. Lá, na companhia de uma boa música, poderia pensar no que fazer com relação aos seus sentimentos por ela.
Quando chegou no pequeno quarto da rua Rocha Faria resolveu tirar o terno e tomar um banho.
Ali bem perto alguém também chegava em casa incomodada com o sapato de salto agulha. A moça olhou para um vaso de belas rosas vermelhas na mesinha da sala e desejou que houvesse ali apenas uma margarida roubada de algum jardim alheio. Flor roubada tem mais valor, envolve um certo ato de heroísmo. Caminhou para o quarto e sentiu-se aliviada ao tirar os sapatos e o vestido de noite. Sentiu vontade de comer um chocolate. Olhou no relógio e era cedo, a padaria do seu Carlos ainda estava aberta. Colocou sua velha calça xadrez e foi comprar chocolate.
Leandro passou alguns minutos sem roupas esperando passar a coceira. Maldita coceira era aquela que ele tinha depois do banho. Resolveu fumar um cigarro e viu que só havia um último no maço. Olhou no relógio e era cedo, a padaria do seu Carlos ainda estava aberta. Colocou sua velha calça xadrez e foi comprar cigarros.
Na padaria encontrou a moça do chocolate. Não falaram uma única palavra, apenas se olharam e trocaram um sorriso de cumplicidade. E como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo no princípio, Leandro voltou pra casa pensando em Vivian e a moça do chocolate pensando no moço das rosas vermelhas.
Ao chegar em casa a moça foi direto pra cama e adormeceu. Durante o sono sonhou que alguém lhe dava uma margaridinha roubada, mas não era o moço das rosas vermelhas, era o moço do cigarro.
Leandro ainda resolveu fumar um cigarro antes de se deitar. Quando foi pra cama ficou rolando até que adormeceu. Acordou e sentiu alguém sussurando palavras doces em seus ouvidos, acariciando suas costas, afagando sua nuca e beijando sua testa. Mas não era Vivian, era a moça do chocolate. Deixou-se ficar ali e adormeceu novamente.
Pela manhã ambos despertaram com suas lembranças oníricas. Mas ao contrário dos gostares, que sabiamente existem alheios a nossa vontade, a razão desconhece os presentes da vida. Assim Leandro passou o resto do dia pensando em Vivian e a moça do chocolate pensando no moço das rosas vermelhas.

terça-feira, 15 de maio de 2007

A curva depois da ponte

"E eu não sabia que a minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé."

Carlos Drummond de Andrade


Quando eu era criança, as coisas eram muito diferentes do que são hoje. A gente não podia fazer nada. Criança não ficava na sala se metendo em conversa de adulto, não comia os melhores pedaços do frango, respeitavam os mais velhos e não podiam fazer malcriações porque ficavam de castigo ou levavam uma bela surra. Entretanto tínhamos o prazer de andar descalço na grama, correr pelas ruas sem medo de sermos atropelados, chupar fruta direto do pé, subir nas árvores, fugir do homem do saco e fazer coisas proibidas, mesmo sabendo que se corria o risco de levar uma sova. E se é verdade que “o menino é o pai do homem”, isso fez de nós adultos corajosos, porque mesmo com medo a gente não deixava de fazer o que tinha vontade. Éramos ardis! Usávamos das mais diferentes técnicas de fuga e de métodos para enganar os pais. Eles, acredito eu, deviam saber das nossas artimanhas, porém não nos tiravam o prazer de nos sentirmos os donos da história.
Perto da minha casa tinha uma ruazinha cheia de árvores onde eu adorava brincar de bola com meus irmãos. Era bom porque sempre tinha sombra, mas os raios de sol passavam vez ou outra pelos ramos das árvores e iluminavam o chão de terra no qual a gente pisava. Como era bom sentir aquele calorzinho! Essa rua era bem comprida e no final tinha uma ponte muito estreita e um pouco sombria que era seguida de uma curva muito fechada. Desde que nos mudamos pra aquela cidade papai dizia que nunca poderíamos passar além da ponte, que o que tinha depois da curva era muito perigoso. Contudo nunca nos disse o que tinha do lado de lá. Eu e meus irmãos imaginávamos as coisas mais incríveis.
Meu primeiro pensamento foi achar que do outro lado morava um homem mal num castelo muito velho e assustador. Depois achei que era bobagem, mesmo porque se houvesse um castelo a gente enxergaria a torre, porque todo castelo tem torre. Depois passei a achar que era lá que morava o homem do saco, que ninguém nunca tinha visto, entretanto todos sabiam que ele existia, pois a vizinhança contava histórias de crianças que nunca mais voltaram pra casa porque foram levadas pelo homem do saco. Cheguei a pensar também que lá tinha morado um velho muito doido que matava gente e depois que ele morreu o espírito dele ficou preso na casa, porque ele era muito mal, e a casa ficou mal assombrada.
O fato é que nunca soubemos o que havia depois da curva de tão perigoso. Nunca nos aventuramos a passar aquela ponte. Nem sei se tínhamos medo do papai, da coisa feia que tinha do outro lado ou se nosso medo real era perder aquele encanto. Como era bom sentar no chão depois do bate bola e ficar imaginando as coisas todas que podiam existir naquele mundo diferente do nosso. Engraçado que durante todo o tempo que moramos por ali, que deve ter sido uns três anos, nunca vimos ninguém, nem coisa alguma indo pra lá da ponte ou vindo de lá. Isso aguçava ainda mais nossa imaginação e nos dava ainda mais medo.
Me mudei daquela casa com 10 anos de idade. Meu pai foi transferido pra uma cidade maior que nem tinha rua de terra, nem sombras de árvores e nem curva depois da ponte. Eu e meus irmãos não podíamos mais jogar bola na rua e o homem do saco nunca apareceu por lá. E talvez por isso, jamais nos esquecemos da curva da ponte. A gente ficava imaginando o que poderia ter acontecido com nossos amigos que continuavam morando na cidadezinha. Se eles haviam ido do outro lado e se tinham descoberto o que havia de tão perigoso depois daquela curva.
O fato é que cresci sem saber porquê papai não nos deixava ir lá. Quando fiquei adulto pensei em perguntar a ele várias vezes, mas achei melhor ficar imaginando, embora soubesse que não era nem um castelo, nem uma casa mal assombrada e nem o velho do saco.
Certa vez, depois de casado, resolvi levar meu filho de 5 anos pra passear na cidadezinha que eu havia morado quando criança. É claro que fui movido, mais que tudo, pela curiosidade de saber se ainda havia a ponte e a curva depois dela.
Ao chegar lá vi que tudo estava do mesmo jeito. A rua ainda era de terra, as árvores continuavam fazendo sombra, a ponte estava lá e a curva também. Fiquei olhando aquilo tudo e senti medo de atravessar. Meu filho me puxava pela mão em direção à ponte, mas eu, contrariando toda a pedagogia moderna, segurei a mão dele e não deixei que fosse. Tirei meus sapatos, pisei na terra que estava molhada, dobrei a barra da calça e me sentei no chão ao lado do meu menino. Disse a ele que ele não podia passar para o lado de lá porque era lá que morava o homem do saco. Ele assustado me perguntou quem era o homem do saco e enquanto eu contava pra ele, os raios de sol passavam pelos ramos das árvores e iluminavam o chão de terra no qual a gente pisava. Nunca foi tão bom sentir aquele calorzinho.

A rotina faz paredes grossas entorno de toda a sensibilidade.

Nos dias em que o despertador falhava o pai ou a mãe batiam na porta do quarto da filha, diziam que já estava na hora de levantar e o pequeno atraso não roubava a normalidade do dia. Certa vez - assim ao acaso mesmo, sem presságio, sem aviso – nem o despertador tocou, nem veio alguém acordar a filha. O hábito encarregou-se de fazê-lo para que ela compreendesse o que havia de excepcional naquele dia.
A casa não era grande nem pequena, era do tamanho da harmonia que sustentava aquela família. Eram todos portadores de uma alegria tão viva que moldava todos os sorrisos e bons dias nas manhãs. Entretanto, naquela manhã, a filha só ouvia o silêncio. Um silêncio que calou até os pássaros em volta da casa. Um silêncio de causar arrepio. Até que uma porta se abrindo rompeu a teia e a mãe disse as únicas palavras que a filha ouviu naquele dia. Não sei como, mas seu pai amanheceu sem voz. Não consegue dizer palavra, ou o que valha.
O que a mãe falou ao telefone, para o médico, a filha não ouviu. Poderia, mas não faziam sentido os sons nos seus ouvidos, era tudo um grande ruído indecifrável. Parecia que era ela que não possuía mais a voz, nem podia ouvir, nem via nada fora de si. Voltou ao quarto e, sentada na cama, pensava que quando era criança imaginava que a voz fosse como uma poção, ou algo mágico que cada um possuía e que podia acabar a qualquer momento. Agora não fazia mais sentido pensar coisas tão fantasiosas. Os pensamentos maduros, diferentes dos de criança, são densos, incapazes de flutuar e acabam por causar terríveis dores de cabeça, já que não saem dela.
As palavras da mãe, ao entrarem pelo ouvido da filha, fecharam os caminhos e transformaram-se numa dessas idéias densas, uma preocupação, que caiu de uma só vez e com seu impacto levantou as volutas que já haviam se acomodado na cabeça.
Já se passara algum tempo e nada rompia o silêncio. Não sabia exatamente o que seu pai tinha, mas agora lhe parecia até contagioso.A filha e a mãe andavam amuadas quando estavam longe do pai. Na sua presença se esforçavam para fingir que aquela era uma situação natural e em suas mentes se esforçavam para terem esperança.
O pai estava um pouco desconcertado por não emitir sons, porém balbuciava entre sopros as palavras com um otimismo afetado. As duas mulheres não o entendiam totalmente, mas não questionavam para não tornar a situação mais desagradável para o pai.
Temiam que algo mais poderia estar acontecendo. Hipóteses sombrias comprimiam o peito da mãe e da filha. Seria algum tipo de câncer no cérebro? Quando ecoava essa pergunta em seus pensamentos sentiam o sangue congelar e o medo tomar conta, não podiam cogitar que o pai estivesse condenado a uma doença tão cruel. Sentiam que cada um naquela família era um pilar que sustentava a alegria daquele lar, bastava um desses pilares ser ameaçado para que os outros também estremecessem.
A peregrinação a médicos estava cada vez mais intensa, porém as respostas não eram precisas o bastante, nenhuma garantia lhes era dada, nenhuma palavra arrancava a família da angústia. Muitos exames foram pedidos dentre eles os que averiguavam a hipótese mais terrível.
Em uma quinta-feira a filha acordou tarde e relutou em sair da cama. Acreditava que aquele dia aguardava uma tarefa a qual ela não sabia se seria capaz de realizar. Foi até a clínica pegar os exames neurológicos do pai. Aquele envelope branco nas suas mãos encerrava ser o fim ou reinício de sua paz. Suas mãos tremiam involuntariamente enquanto se dirigia para o consultório da tia médica que interpretaria aqueles exames. Subiu as escadas do consultório e se dirigiu à sala da tia. Sentou-se após entregar o envelope e se manteve paralisada de ansiedade e apreensão. De repente se viu imergir daquela espécie de purgatório que fora a sua vida nos últimos dias: seu pai não tinha nenhum câncer no cérebro. O pai não tinha nada. Fisiologicamente falando ele estava perfeito. Todos os exames feitos desde a mudez não acusavam nenhum problema físico. A tia então sugeriu que o levassem a um psiquiatra, certamente o problema era de fundo emocional.
Ao sair da clínica a filha não sabia o que pensar, ou pensava tantas coisas que se perdia em seus próprios devaneios. Sempre achara o pai tão forte. Ele sempre lhe pareceu tão emocionalmente maduro e psicologicamente sadio. Era difícil acreditar que de uma hora pra outra aquele homem tão seguro de si pudesse se perder no seu próprio caminho. Era o seu pai, seu pai!!! O seu super-herói que sempre a acordava de manhã.
Como não se lembrar do primeiro tombo? Do primeiro dia na escola? Do choro pela primeira nota perdida ou pelo primeiro amor partido? Era ele, sempre ele que estava ao seu lado, um pilar que sempre a sustentava a cada tremor de terra. Mas e agora? O pilar estava prestes a desmoronar, e quem a sustentaria?
Decidiu não ir pra casa. Estava confusa demais para enfrentar a família. Ligou pra mãe para acalmá-la. Disse que estava tudo bem com o pai, a pior das hipóteses havia sido descartada. Tomou um ônibus que ela nem ao menos sabia pra onde ia. Sentou-se ao lado de uma senhora cega que a interpelou perguntando o motivo de tanta angústia. Assustada respondeu que não havia nada de errado com ela. A senhora riu e balbuciou umas poucas e incompreensíveis palavras. Mais assustada ainda decidiu saltar do ônibus no próximo ponto. Olhou pela última vez para a cega, que sorriu como se a compreendesse, como se viesse algo em seus olhos. Num ato quase mecânico a filha sorriu de volta e acenou. Sabia que, de alguma forma, a velha a enxergaria.
Pegou o ônibus de volta pra casa. Queria chegar em casa e dizer ao pai o quanto o amava. Entretanto não disse nada. Emudeceu diante do olhar de cumplicidade dele. Abraçou-o e se deu conta de que em todos os seus anos de vida nunca ouvira o pai tanto quanto naquele momento.

OBS: Esse texto foi escrito por mim, Elaine Duarte, e meus dois companheiros de aventuras literárias, Ricardo Lima & Raphael Cobra.