terça-feira, 15 de maio de 2007

A rotina faz paredes grossas entorno de toda a sensibilidade.

Nos dias em que o despertador falhava o pai ou a mãe batiam na porta do quarto da filha, diziam que já estava na hora de levantar e o pequeno atraso não roubava a normalidade do dia. Certa vez - assim ao acaso mesmo, sem presságio, sem aviso – nem o despertador tocou, nem veio alguém acordar a filha. O hábito encarregou-se de fazê-lo para que ela compreendesse o que havia de excepcional naquele dia.
A casa não era grande nem pequena, era do tamanho da harmonia que sustentava aquela família. Eram todos portadores de uma alegria tão viva que moldava todos os sorrisos e bons dias nas manhãs. Entretanto, naquela manhã, a filha só ouvia o silêncio. Um silêncio que calou até os pássaros em volta da casa. Um silêncio de causar arrepio. Até que uma porta se abrindo rompeu a teia e a mãe disse as únicas palavras que a filha ouviu naquele dia. Não sei como, mas seu pai amanheceu sem voz. Não consegue dizer palavra, ou o que valha.
O que a mãe falou ao telefone, para o médico, a filha não ouviu. Poderia, mas não faziam sentido os sons nos seus ouvidos, era tudo um grande ruído indecifrável. Parecia que era ela que não possuía mais a voz, nem podia ouvir, nem via nada fora de si. Voltou ao quarto e, sentada na cama, pensava que quando era criança imaginava que a voz fosse como uma poção, ou algo mágico que cada um possuía e que podia acabar a qualquer momento. Agora não fazia mais sentido pensar coisas tão fantasiosas. Os pensamentos maduros, diferentes dos de criança, são densos, incapazes de flutuar e acabam por causar terríveis dores de cabeça, já que não saem dela.
As palavras da mãe, ao entrarem pelo ouvido da filha, fecharam os caminhos e transformaram-se numa dessas idéias densas, uma preocupação, que caiu de uma só vez e com seu impacto levantou as volutas que já haviam se acomodado na cabeça.
Já se passara algum tempo e nada rompia o silêncio. Não sabia exatamente o que seu pai tinha, mas agora lhe parecia até contagioso.A filha e a mãe andavam amuadas quando estavam longe do pai. Na sua presença se esforçavam para fingir que aquela era uma situação natural e em suas mentes se esforçavam para terem esperança.
O pai estava um pouco desconcertado por não emitir sons, porém balbuciava entre sopros as palavras com um otimismo afetado. As duas mulheres não o entendiam totalmente, mas não questionavam para não tornar a situação mais desagradável para o pai.
Temiam que algo mais poderia estar acontecendo. Hipóteses sombrias comprimiam o peito da mãe e da filha. Seria algum tipo de câncer no cérebro? Quando ecoava essa pergunta em seus pensamentos sentiam o sangue congelar e o medo tomar conta, não podiam cogitar que o pai estivesse condenado a uma doença tão cruel. Sentiam que cada um naquela família era um pilar que sustentava a alegria daquele lar, bastava um desses pilares ser ameaçado para que os outros também estremecessem.
A peregrinação a médicos estava cada vez mais intensa, porém as respostas não eram precisas o bastante, nenhuma garantia lhes era dada, nenhuma palavra arrancava a família da angústia. Muitos exames foram pedidos dentre eles os que averiguavam a hipótese mais terrível.
Em uma quinta-feira a filha acordou tarde e relutou em sair da cama. Acreditava que aquele dia aguardava uma tarefa a qual ela não sabia se seria capaz de realizar. Foi até a clínica pegar os exames neurológicos do pai. Aquele envelope branco nas suas mãos encerrava ser o fim ou reinício de sua paz. Suas mãos tremiam involuntariamente enquanto se dirigia para o consultório da tia médica que interpretaria aqueles exames. Subiu as escadas do consultório e se dirigiu à sala da tia. Sentou-se após entregar o envelope e se manteve paralisada de ansiedade e apreensão. De repente se viu imergir daquela espécie de purgatório que fora a sua vida nos últimos dias: seu pai não tinha nenhum câncer no cérebro. O pai não tinha nada. Fisiologicamente falando ele estava perfeito. Todos os exames feitos desde a mudez não acusavam nenhum problema físico. A tia então sugeriu que o levassem a um psiquiatra, certamente o problema era de fundo emocional.
Ao sair da clínica a filha não sabia o que pensar, ou pensava tantas coisas que se perdia em seus próprios devaneios. Sempre achara o pai tão forte. Ele sempre lhe pareceu tão emocionalmente maduro e psicologicamente sadio. Era difícil acreditar que de uma hora pra outra aquele homem tão seguro de si pudesse se perder no seu próprio caminho. Era o seu pai, seu pai!!! O seu super-herói que sempre a acordava de manhã.
Como não se lembrar do primeiro tombo? Do primeiro dia na escola? Do choro pela primeira nota perdida ou pelo primeiro amor partido? Era ele, sempre ele que estava ao seu lado, um pilar que sempre a sustentava a cada tremor de terra. Mas e agora? O pilar estava prestes a desmoronar, e quem a sustentaria?
Decidiu não ir pra casa. Estava confusa demais para enfrentar a família. Ligou pra mãe para acalmá-la. Disse que estava tudo bem com o pai, a pior das hipóteses havia sido descartada. Tomou um ônibus que ela nem ao menos sabia pra onde ia. Sentou-se ao lado de uma senhora cega que a interpelou perguntando o motivo de tanta angústia. Assustada respondeu que não havia nada de errado com ela. A senhora riu e balbuciou umas poucas e incompreensíveis palavras. Mais assustada ainda decidiu saltar do ônibus no próximo ponto. Olhou pela última vez para a cega, que sorriu como se a compreendesse, como se viesse algo em seus olhos. Num ato quase mecânico a filha sorriu de volta e acenou. Sabia que, de alguma forma, a velha a enxergaria.
Pegou o ônibus de volta pra casa. Queria chegar em casa e dizer ao pai o quanto o amava. Entretanto não disse nada. Emudeceu diante do olhar de cumplicidade dele. Abraçou-o e se deu conta de que em todos os seus anos de vida nunca ouvira o pai tanto quanto naquele momento.

OBS: Esse texto foi escrito por mim, Elaine Duarte, e meus dois companheiros de aventuras literárias, Ricardo Lima & Raphael Cobra.





4 comentários:

Anônimo disse...

Profe, me emocionei!!!! Quanta sensibilidade!!!

Unknown disse...

Primaaa..
legal pra caramba seO blog hein?!
blog de gnt cult hein?!
essa eH minha primaaaa!!!
=]
bejO
te amO

Elisa DI mINAS disse...

É de comer e engasgar!
Estarei sempre aqui.
Beijos

Anônimo disse...

Emudeci!!