domingo, 17 de maio de 2009

O último sopro da estrela

Depois de reler A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, fiquei pensando em todas as Macabeas existentes por aí. Macabea não é somente a retirante nordestina que vem tentar a vida no sul. Macabea são todas as mulheres que se sentem marginalizadas porque têm vergonha de si mesmas. “Vergonha por pudor ou por se feia?” Mulheres que são como cabelos na sopa porque “não dá vontade de comer.” Macabea são todos os poetas e escritores que se sentem à margem, que pensam “que de um momento para o outro cairão para fora do mundo.” Macabea são todos aqueles que chegaram “ à conclusão de que a vida incomoda bastante, alma que não cabe bem no corpo.” Aqueles que sabem que “a vida é um soco no estômago.”

Em A Hora da Estrela Clarice traça o destino de três personagens que se misturam em um só. Tentando se esconder atrás de um narrador masculino, Rodrigo S.M., “ porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”, a autora denuncia o descaso com o retirante nordestino sempre à margem da sociedade, sempre mendigando num mundo que não foi feito pra ele. Entretanto, Macabea também serve de escudo para a própria autora como o narrador masculino. A história da nordestina é intercalada por reflexões desse narrador que, assim como a personagem, se sente à margem e não vê outra saída que não a escrita. “Escrevo por não ter nada a fazer no mundo. Sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens.”

Não é exagero dizer que A Hora da Estrela é um grito desesperado de uma escritora que não sabe mais o que fazer com suas dores. Uma escritora que se sente dispensável num mundo tão mecânico como o nosso. Macabea “é a virgem inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu agora – também eu não faço falta, e até o que escrevo um outro escreveria.(...) Pois que a vida é assim: aperta-se um botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável.”

Última obra da escritora, A Hora da Estrela foi escrita quando Clarice já tinha conhecimento da sua doença, já sentia a proximidade da morte e, Macabea, é a personagem que nasce da angustia de se sentir sozinha, de se doer o tempo todo, dentro, sabendo que para essa dor não há aspirina que resolva.

Numa outra perspectiva Macabea se apresenta também como o contrário da autora. Se Clarice escreve porque tem muitas perguntas sem respostas e se angustia com essas perguntas, a nordestina é a que nunca pergunta, “daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para que, não se indagava.” Não seria Macabea o ideal pessoano personificado em Alberto Caeiro? “O mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos)/ Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...”

Macabea é Rodrigo S.M., é Clarice, é Pessoa, “ és tu leitor”, sou eu, que “escrevo porque sou uma desesperada e estou cansada, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.”

sábado, 10 de novembro de 2007

Borboleta


Quando eu era menina, tentei, certa vez, criar uma borboleta. Capturei-a no jardim da vizinha. A pobrezinha ficou tão assustada que não se moveu. Eu, em minha ingenuidade, coloquei o dedo sobre o corpinho do pequeno inseto na esperança de sentir seu coração bater.
Coloquei-a em um vidro de maionese, fiz alguns furos na tampa para entrar ar e joguei algumas folhinhas de árvore para ela comer. Não sei quem disse que borboleta come folhas de árvore, mas eu achava que sim.
Entrei em casa com o vidro nas mãos e mostrei para a mamãe. Ela me olhou com um sorriso e balançou a cabeça num gesto que só mais tarde vim a saber o que significava.
Passei o resto do dia observando minha mais nova amiginha. Não conseguia me separar dela. Me sentia tão feliz e pensava que ela também sentia. Na hora de dormir foi um sacrifício, mamãe teve que me das umas palmadas para eu ir para a cama.
No dia seguinte levantei e fui olhar minha borboletinha. Cheguei perto do vidro e ela estava estática, com as perninhas dobradas e duras. Tentei fazê-la voltar à vida, mas foi inútil. Chorei o resto do dia e fiz um enterro para a pobrezinha. Coloquei-a numa caixa de fósforo, a cobri com flores e enterrei no jardim da minha casa.
Uma semana depois, quando o fato já estava completamente esquecido, um besouro pousou na minha mão.

PS: Encontrei esse texto no meio de uns papeis antigos. Ele foi escrito em 21 de dezembro de 1989

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Entre riscos e rabiscos ou Do amor e outros alimentos II

Lígia me esperava com tapeçarias, Ilha-de-madeira sobre a mesa, lustres, mármores e brilhantes, e eu só queria pão. Desenfreados, os ponteiros giravam no relógio. A hora se aproximava, e eu, sufocado pela gravata trocava de roupa pela quinta vez.
Toquei a campainha. O empregado vestido de casaca abriu a porta e pediu que entrasse. Parei no corredor e fiquei a espera de Lígia. Não sabia em qual porta entrar ou qual corredor seguir, e, mesmo que soubesse, não conseguiria me mover.
Lígia desceu as escadas, deslumbrante em seu vestido de seda pura. Eu, em minha volúpia, imaginei como ficaria seu corpo sem o vestido. Entramos em uma das portas e saímos numa sala enorme, cheia de sofás, tapetes e cristaleiras cheias de quinquilharias antigas. Sentei no sofá mais próximo da porta, me sentia mais seguro. Ela me serviu um de seus licores. Virei o cálice e tomei. Não tinha tempo para saboreá-lo.
Fomos para a sala de jantar. Senti-me inseguro diante de tantos talheres, não sabia como usá-los. As taças eram de cristal e as louças eram de porcelana compradas em um antiquário em Colônia, e eu, mal sabia onde ficava Colônia.
Levantei-me da mesa, afrouxei a gravata, olhei-a pela última vez. Seus olhos me imploravam que ficasse, mas ao mesmo tempo sabiam que tinha que ir.
Sai meio sem rumo. A noite estava bela. No céu a ausência da lua dava lugar ao brilho das estrelas. Aquela não era mais a minha Ligia. Não, não era a garotinha sardenta com quem eu soltava papagaio e jogava futebol. Ela nem ao menos tinha mais sardas.
Era estranho reencontrá-la daquela forma. Fomos separados tão repentinamente em algum momento ignorado do tempo em que vivíamos na nossa cidade pacata do interior de Minas. Algum momento de descuido a pontear as cordas do violão com os dedos, não sentindo que por eles deslizava meu caminho e caia no chão, onde não poderia achá-lo intocado.
Aquela sensação de dúvida, de perda, não sei exatamente do que, faziam com que eu olhasse o céu estrelado e visse, como fosse o céu da noite a porta dum relicário quase inexplorado dentro de mim. Todas e totalmente desorganizadas, as lembranças das brincadeiras, da enorme pipa branca que papai me ajudara a fazer, da casa da mãe de Lígia e esta tão somente uma garotinha sardenta, esperta, sonhadora e feliz.
Deixei-me a organizar as lembranças, como quem organiza seu quarto, e quando me dei conta já havia amanhecido. Talvez até adormecera. E aquela noite foi uma mortalha para toda minha confusão. Já sabia exatamente o que sentia, só não sabia se deveria procurá-la novamente.
Entrei no carro e vi que ainda estava cedo, 6:30 da manhã. Fui direto para minha casa, abri as janelas. Vi sobre a cama as roupas que colocara antes de ir me encontrar com Lígia e sobre a mesa de desenho três projetos inacabados e ainda tinha que refazer os cálculos de uma casa na zona sul.
Fui para a cozinha e enquanto preparava um suco pensava se trabalharia nos projetos ou arrumaria aquelas roupas e dormiria até a tarde. Tomei o suco na varanda, de onde via o mar e sentia sua brisa. Só conheci o mar com 19 anos, quando entrei para a Faculdade de Arquitetura no Rio de Janeiro. Eram incrivelmente maiores do que eu imaginava, o mar e o Rio. Tanto que me assustaram a princípio.
Ver o mar ali da minha varanda, a poucos metros da casa, já não me assustava, projetei a casa pensando mesmo nisso. O que me assustava mesmo era pensar que ainda amava Lígia e poderia passar de novo pelo sofrimento de perdê-la.
O som do mar cadenciava cada relance que lembrava. Quando ela parou de responder minhas cartas, quando voltei a Montes Claros e sua mãe me disse que ela conhecera um homem rico de São Paulo... e quando a encontrei há uma semana numa livraria. Tudo tão rápido. Um reencontro tão inesperado (como deve ser o bom reencontro) depois de 11 anos. Quis sair da livraria e ludibriar a mim mesmo, mas ela me chamou... e acabamos combinando o jantar de ontem, tão monótono, tão diferente. Normal era ir a sua casa à tarde comer pão com mortadela e ouvir discos, até não sentir mais o relógio no pulso e sentir-me livre do tempo.Mas aquilo já me parecia impossível.
Fiquei um pouco mais na varanda, observando como num dado ponto do horizonte a água e o céu se juntam, praticamente, tão tênue é o liame entre eles. Aquilo me valeu como uma noite de sono profundo e logo saí dali, direto para a mesa de projeto.
No dia seguinte, segunda-feira, fui ao escritório e, quando cheguei, recebi um telefonema de meu tio Fernando que queria que eu projetasse uma casa para seu filho e pretendia mostrar-me o terreno naquele fim de semana em Montes Claros.
Pensei na viagem durante todos os dias daquela semana, o que de certa forma fez com que as horas se alongassem na espera. Era óbvio que a vida como uma linha sinuosa voltava a tocar um trecho de meu passado, e, como todas ás vezes em que isso acontece eu não deveria ser o mesmo após esse encontro. Era como se os fantasmas do passado voltassem de alguma forma insatisfeitos, mas porque só agora reapareceria?Talvez de algum modo só voltem no momento em que nos consideram capazes de desatar o nó que os prende ao mastro da frustração.
Finalmente chegara o fim da semana decidi que era melhor partir na sexta pois já estava ansioso por alguma coisa que não conhecia. A mala já estava pronta há alguns dias, foi a forma que encontrei para não me sentir inerte à ansiedade que era agravada por não ter notícias de Lígia. Havia pensado nela todos os dias, porém me sentia confuso por não entender em que direção ia aquele sentimento.
Peguei o ônibus logo de manhã, o sol de primavera brilhava solene pela janela, não havia nuvens e toda a paisagem me lembrava as visitas que fizera com freqüência durante a faculdade mas que hoje eram raras. Porque de repente a ânsia por rever Montes Claros? Não pertencia mais a aquela cidade nem aquela vida mas era forte o desejo de rever as pegadas que havia deixado naquela terra.
Saí do ônibus e da rodoviária como se nunca houvesse feito aquele caminho antes olhava para os lados e observava a cidade em movimento. Não avisara ninguém a que horas chegaria por isso estava livre para um passeio antes de ir aos “negócios”. Minhas pernas pareciam ainda conhecer aqueles caminhos, porém meus olhos desconheciam aquelas lojas aquele movimento aquela gente, a cidade havia mudado, eu também...
Sem premeditação cheguei a uma praça que me pareceu uma ilha de sossego, então resolvi me sentar em um banco. Sentei ali e pude ver com mais calma onde estava. A praça era uma velha conhecida, fora um importante cenário de minha infância e adolescência. Estava um tanto diferente de minhas lembranças, as árvores haviam se tornado opacas e pareciam já velhas e castigadas pelo movimento nas ruas adjacentes e os canteiros haviam sido pintados de cores um tanto chamativas como se algum político quisesse fazer notar sua obras.
Memórias passaram a fluir em minha mente naquela tarde ensolarada. Eu corria atrás de Lígia depois de sairmos da missa, tínhamos seis anos, podia ouvir nossas risadas. Recordações mornas e agradáveis haviam se passado naquele local. A praça nos vira crescer sem que nós a notássemos ou notássemos que estávamos crescendo.
Me pus a caminhar por entre os caminhos sombreados, feixes de luz escorriam por frestas nas árvores.Era como se estivesse assistindo a um filme no qual eu e Lígia protagonizávamos uma história de liberdade sem pretensões. Brincávamos por entre as grades do coreto e de súbito fomos até uma árvore retorcida e baixa. Ligia e eu escrevíamos nossos nomes lado a lado com o canivete que recebi de meu avô.
A cena desapareceu, mas o cenário permanecia. Mirei a árvore retorcida. Ela havia crescido um pouco. Tomou-me o desejo de ver nossos nomes escritos e não exitei em ir até a árvore. Lá estavam eles, não como havíamos talhado, o tempo passou e a árvore se tornou mais espessa, alargou e distanciou nossos nomes. E de súbito a linha sinuosa da vida se desligou do ponto do passado que estivera entrelaçada por alguns dias, e permaneceu sendo traçada entre riscos e rabiscos.

PS:ESSE CONTO FOI ECRITO POR MIM, ELAINE DUARTE, E MEUS DOIS COMPANHEIROS DE AVENTURAS LITERÁRIAS, RICARDO LIMA E RAPHAEL COBRA.